sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Capítulo 5 
No sábado, Jacira chegou em casa passava das duas da tarde. Saíra da oficina à uma hora e por sorte conseguira embarcar no primeiro ônibus.


Ao entrar em casa notou logo que Geni deixara amon­toada na pia toda louça do café da manhã e do almoço.


Fingindo não ver o ar desaprovador da filha, Geni disse calma:


-   Deixei seu prato no forno.


-   E a louça por minha conta.


- Ontem eu lavei quase tudo. Mas hoje me senti mal, não consegui lavar. Você é moça, tem mais saúde do que eu.


Jacira não respondeu. Não queria discutir. Apanhou o prato de comida e notou que estava fria. Estava com fome e colocou na frigideira para esquentar.


Depois, sentou-se e começou a comer pensando o que iria fazer à tarde, além de passar a roupa da se­mana. Ela gostaria de ter um lugar para ir para poder usar o vestido novo, mas não lhe ocorria nenhum.


Se ao menos Margarida morasse mais perto, po­deria ir a casa dela conversar um pouco. Lá o am­biente era calmo e agradável. Jacira tinha vontade de sair, de passear, de conhecer pessoas e principalmente de usar aquele vestido.


Inquieta, levantou-se e cuidou de lavar a louça, para evitar a conversa desagradável da mãe e também para espantar o tédio.

Sua vida era vazia e sem nada que a alegrasse. Estava cansada da rotina e não sabia o que fazer para mudar. Acabou de arrumar a cozinha, passou toda a roupa da semana, depois foi para o quarto. 

Olhou o relógio, eram cinco horas da tarde. No dia seguinte talvez fosse à casa de Margarida, mas o que fazer para o tempo passar? O pai disputava com a mãe os pro­gramas da televisão. Conversar com eles nunca fora possível. Todas às vezes que ela tentava, seja qual fosse o assunto que puxasse, acabava sempre com as queixas dele por estar desempregado e dela por não ter mais saúde para os serviços domésticos.

Suspirou resignada. Sentou-se na cama, abriu a gaveta da mesa de cabeceira para pegar a lixa de unhas e um cartão caiu no chão. Ela apanhou-o e leu: Ernesto Vilares. Imediatamente lembrou-se do homem que a ajudara a não cair e do lenço dele que ficara de devolver.

Sorriu. Estrearia o vestido, já havia se esquecido de que comentara com Margarida que iria até o ende­reço dele para devolver-lhe o lenço emprestado.

Colocou o vestido novo e satisfeita olhou-se no espelho. Parecia outra pessoa. Caprichou no penteado, puxando os cabelos para trás e colocando uma fivela do lado. Depois, pegou seu sapato preto e olhou-o sem muito entusiasmo. O salto não era alto como os de suas colegas de trabalho, mas era o que tinha.

Conformada, calçou-o e como não tinha uma bolsa mais bonita, preferiu uma carteira pequena, mas nova. Pintou-se ligeiramente e saiu.

Geni estava lendo revistas na sala e, vendo-a, le­vantou-se de um salto dizendo assustada:

-  Aonde você vai vestida desse jeito e a esta hora?

-  Vou sair um pouco, mas voltarei logo.

-  Aonde você vai?

-  Dar uma volta.

- E precisava se pintar desse jeito? Onde arranjou esse vestido tão agarrado? Não tem vergonha?

Jacira suspirou e não respondeu logo tentando conservar a calma. Parou diante de Geni e disse séria:

-  Estou com trinta e oito anos. Acho que sei cuidar de mim. Não preciso de babá.

-  Viu isso, Tide? Você não vai tomar nenhuma providência? Vai deixar que sua filha saia desse jeito, como uma prostituta?

Aristides, que estava assistindo a uma partida de futebol com muito interesse, não respondeu e Geni gritou:

- Tide? Além da filha, você também não me dá atenção. O que está acontecendo nesta família?

Irritado por ter de desviar a atenção do jogo que estava no auge, ele respondeu:

- Que loucura é esta? Não se pode mais assistir a um jogo de futebol em paz? Arranjem-se as duas. Não tenho nada com suas discussões. 

 Deixem-me em paz.

Jacira deu as costas e saiu. Geni, inconformada, ainda tentou chamar a atenção do marido, mas desta vez ele não teve paciência para ouvir suas lamen­tações e ela, vendo que ele não lhe dava nenhuma atenção, sentou-se, apanhou novamente a revista e continuou lendo.

Jacira foi até o endereço indicado no cartão, pa­rando diante de uma casa antiga, grande, rodeada de jardins, muito bonita, no bairro da Aclimação. Pensou que não podia ser lá e conferiu o endereço novamente. Estava certo.

Ficou parada diante do portão de ferro, hesitante, sem coragem de tocar a campainha.

Nesse instante, uma moça muito bem-vestida e um rapaz apareceram, abriram o portão e, vendo Ja­cira, a moça perguntou:

- A senhora está esperando por alguém? O curso acabou e todos já vão sair.

Animada pelo tom amigo em que ela disse aquelas palavras, Jacira perguntou:

- Aqui é a casa do sr. Ernesto Vilares?

- Aqui é o lugar onde ele ministra seus cursos - respondeu o rapaz sorrindo.

Nesse momento, diversas pessoas saíram da casa e foram se aproximando do portão. Jacira perguntou ao rapaz:

- Aqui é uma escola?

- Para adultos. Nós somos alunos do dr. Ernesto. Jacira olhou-os surpreendida. Ele a convidara para
ir àquele endereço. Sentiu curiosidade. As pessoas ali eram bem-vestidas, deviam ter estudado em boas es­colas, que curso estariam fazendo?

Não teve coragem de perguntar. Esperou que todos saíssem e um rapaz veio para fechar o portão. Vendo-a, indagou:

- A senhora deseja alguma coisa?

- Outro dia o sr. Ernesto emprestou-me um lenço e eu vim devolvê-lo. Pode fazer o favor de en­tregar a ele?

-  A senhora não deseja fazê-lo pessoalmente?

-  Posso?

-  Queira entrar, por favor.

Jacira entrou, acompanhou o moço e foi condu­zida a uma sala onde ela viu o homem que a socorrera naquele fim de dia.

A princípio ele não a reconheceu, olhou-a que­rendo descobrir quem era. Jacira, intimidada pelo am­biente luxuoso em que estava, disse com suavidade:

- Sou Jacira. Vim devolver-lhe o lenço que me emprestou naquele fim de tarde quando me desequili­brei descendo do ônibus.

Ele sorriu, aproximou-se e estendeu a mão:

- Agora me recordo! Você está diferente. Como vai?

-  Bem. Obrigada por tudo. Não quero tomar o seu tempo.

- Nada disso. Você vai tomar um café comigo. Esperei que viesse, mas demorou.

-   Desculpe. É que eu trabalho muito e fiquei sem tempo.


- Venha comigo. Vamos na sala ao lado.


Ele segurou o braço dela conduzindo-a à sala con­tígua. Lá era uma pequena copa, a mesa estava posta e ele puxou a cadeira para que Jacira se sentasse. De­pois, colocou uma xícara na sua frente e perguntou:

-   Você toma café, leite ou prefere chá?

-   Café com leite.

Jacira respondeu sem jeito. A louça era fina e tinha alguns petiscos sobre a mesa. Ernesto serviu-a e sentou-se dizendo:

- Fique à vontade. Faça de conta que está em sua casa!

O contraste era tanto que Jacira não se conteve. Seja por estar nervosa naquela ambiente ou por medo de não saber portar-se diante de um homem tão fino, ela desabou a chorar, e ele imediatamente segurou a mão dela dizendo com voz suave:

- Venha comigo. Vamos nos sentar naquele sofá e conversar. Tomaremos nosso lanche depois.

Jacira soluçava. As lágrimas corriam pelo seu rosto e ela não conseguia parar de chorar. A beleza do lugar, as pessoas finas e bem-vestidas, o ambiente agradável e acolhedor, as flores nos vasos e o jeito amigo com o qual foi recebida a fizeram notar o quanto sua vida era ruim, feia, sem graça. Ela chorava os anos perdidos em um ambiente triste de queixas e problemas sem beleza e sem alegria.

Ernesto continuou segurando a mão dela e es­perou calmamente que ela parasse de chorar. Quando ela se calou, olhou-o envergonhada e disse:

- Desculpe. Toda vez que nos encontramos eu choro desse jeito. Eu não sou chorona. Nunca me lembro de ter chorado tanto como agora.

- Você está lavando a alma. Jogando fora mo­mentos de frustração e de amargura.

-   De fato. Minha vida tem sido pobre de beleza, de alegria, de amor e de dinheiro.

-   No entanto, você é uma mulher bonita, moça, cheia de saúde, e tem tudo para ser feliz.

-   Você quer me animar. Sou feia, sem graça, pobre e muito infeliz.

-   É assim que você se vê, mas eu lhe garanto que está errada.
Ela baixou a cabeça e não respondeu. Ele era um homem bem-educado e estava sendo gentil. Mas Er­nesto percebeu que ela não acreditou em suas pala­vras e continuou:

- Aliás, não estou dizendo isso para agradá-la porque sei que a verdade em qualquer caso é sempre o melhor caminho. Você é uma pessoa maltratada, que não cuida da sua aparência, que carrega o mundo nas costas, sempre faz tudo para os outros, mas não tem responsabilidade consigo mesma.

Jacira admirada, levantou os olhos e seu rosto cobriu-se de vivo rubor quando disse:

Isso não é verdade. Sou muito responsável. Eu trabalho todos os dias, viajo em pé em um ônibus cheio, chego em casa e ainda faço todo o  -   serviço do­méstico, pois meus pais são idosos e dependem de mim. Não cuido da aparência porque não tenho di­nheiro para comprar boas roupas e vestir-me bem. Até este vestido foi presente de uma amiga.

-   Você cumpre seu horário de trabalho, cuida de seus pais, mas não cuida de você. Coloca-se em último lugar e se julga inferior aos outros. Não sabe que nossa primeira obrigação como pessoa é cuidar do nosso bem-estar. Não precisa ter dinheiro para fazer isso. 

Basta prestar atenção ao que sente, valo­rizar suas necessidades em primeiro lugar. Só assim vai ficar bem até para poder desempenhar melhor seus compromissos.

-   Eu não quero ser egoísta. Quando chego can­sada e reclamo por minha mãe ter deixado a louça do dia inteiro para eu lavar, ela diz que sou egoísta. Sinto-me culpada e faço tudo o que ela quer. Eu quero que ela seja feliz.

-   Mesmo à custa da sua infelicidade? Você não me parece uma pessoa feliz.

-   A vida tem sido cruel comigo. Meus dois irmãos foram embora de casa há anos e não dão notícias. Meu pai ficou desempregado e não arranjou mais emprego por causa da idade, o dinheiro que recebe da aposen­tadoria não dá nem para o aluguel da casa e todo o dinheiro que ganho na oficina mal dá para pagar as despesas. 

Levando essa vida, como eu posso pensar em mim e ser feliz? Às vezes tenho vontade de ir em­bora também, mas depois me arrependo. O que será deles se eu também os deixar?

-   Você é uma boa filha e não é errado dedicar-se ao bem-estar dos seus. Mas sinto que você está fa­zendo isso de maneira errada.

-   Como assim?

-   Depois você vai me contar como são seus pais, seus dias no emprego, e como se relaciona com eles. Então voltaremos a conversar. Agora vamos tomar nosso café, falar sobre outras coisas. 

Desejo mos­trar-lhe nosso espaço e explicar como é nosso tra­balho com as pessoas.

O rosto de Jacira animou-se:

- Observei as pessoas saindo animadas, pensei que fosse uma festa.
Ernesto sorriu e seus olhos brilharam. Falar do seu trabalho era o que ele mais gostava.

- Aprender a viver melhor é sempre uma festa e eu gosto de ensinar como se faz isso. Essa é minha profissão.

-   Não entendi. Você é médico?

-   De certa forma sim, mas eu cuido da alma.

- Você é um médico da alma? Não sei como é isso. Nunca ouvi falar.

Ernesto sorriu e respondeu:

- Você não sabe que quando seu corpo adoece, ou quando se sente infeliz, a verdadeira causa está em como você vê a vida. Acredita que sua felicidade depende dos outros e por esse motivo faz tudo para que eles fiquem bem, sacrifica-se julgando que seja sua obrigação, porque é assim que nossa sociedade tem ensinado. Não que prestar ajuda ou fazer algo bom para os outros seja um erro, o problema é que ao fazer isso você os 
coloca em primeiro lugar e se es­quece de cuidar de si. Como está se sacrificando pelos outros, espera que eles cuidem de você.


Ernesto falava devagar, olhando nos olhos de Ja­cira, fez ligeira pausa e, notando que ela estava pres­tando atenção, continuou:

-   Essa é uma grande ilusão porque os outros não vão fazer o que você gostaria. Alguns procuram tirar proveito, usando-a, outros se afastam porque não gostam que se intrometa em suas vidas.

-   Eu me sacrifico pelos meus pais e eles nunca me agradecem, só criticam. Minha mãe diz que eu sou feia, quando me arrumo um pouco melhor, que pareço uma prostituta. Eles são ingratos, não reconhecem meu esforço. Isso me entristece muito. Às vezes tenho vontade de sumir, ir para longe. Mas falta coragem.

-   Se eles a tratam dessa forma, a culpa é sua, não deles.

Jacira olhou-o admirada:

-   Minha? Eu faço tudo para eles e a culpa é minha?

-   Você não sabe se colocar. Se faz tudo que eles querem como é que eles vão saber até onde podem ir? Você não coloca limites e eles acham que podem abusar.

Jacira ficou pensativa por alguns segundos depois disse:

- No outro dia fui passar o domingo na casa de minha única amiga e quando voltei no fim da tarde, minha mãe estava brava porque eu saí e não passei a roupa da semana e ainda deixou toda a louça do dia na pia para eu lavar. Eu não suportei. Ela diz que é doente, mas muitas vezes eu duvido. Tem muito apetite, lê revistas o dia inteiro ou fica na televisão com muita disposição. Só se sente mal na hora de fazer algum serviço. Eu não aguentei. Disse que ia passar a roupa, mas a louça não ia lavar. Ela tentou convencer-me, disse que estava passando mal, porém fiquei firme. Cumpri a minha parte e fui dormir.

-  Na manhã seguinte a cozinha estava arrumada.

-  Como sabe?

-  Por que você fez do jeito certo. Colocou-se.

-  Na hora fiquei com remorso pensando que eu poderia ter arrumado a cozinha.

-  Se fizesse isso a estaria prejudicando mais ainda.

-  Você está enganado. Eu jamais seria capaz de prejudicar alguém. Gosto de ajudar.

-  Toda ajuda precisa ser inteligente para fazer com que a pessoa melhore. Você está impedindo sua mãe de se ocupar tornando-a indolente e comodista.

-  Ela age assim porque quer. Está sempre insatis­feita, queixando-se da vida, de tudo.

-  A atividade física distrai, ocupa o pensamento e faz o corpo se mexer. Na natureza tudo é movimento. Não fazer nada traz insatisfação, tédio. Sua mãe pre­cisa voltar a interessar-se pela vida.

Jacira olhou-o séria. Ernesto tinha razão. Geni perdera o gosto pela vida, vivia incapaz de apreciar qualquer coisa. Mergulhava nas histórias românticas para esquecer a própria infelicidade. Vivia de ilusão.


-  De fato. Eu gostaria de fazer alguma coisa para que ela se sentisse mais feliz.

-  Eu sei. Mas antes você precisa conquistar a sua própria felicidade.

Jacira suspirou e respondeu:

-   Eu já desisti. Felicidade não é para mim. Ernesto olhou-a sério e pediu:

-   Feche os olhos.

Ela obedeceu e ele prosseguiu:

- Imagine que você está em um jardim cheio de flores. Sinta o perfume que elas emanam. O céu está azul e sem nuvens, o ar é leve e agradável. Os pás­saros cantam alegres nas árvores e seu coração está em paz. Pense que você não está só. Espíritos ilu­minados, mensageiros da luz a envolvem com amor. Querem que ouça o que têm a dizer.

O corpo de Jacira estremeceu, fundo suspiro saiu do seu peito.

Ernesto levantou-se, ligou o som e uma música suave encheu o ar enquanto Jacira recostou-se no sofá e relaxou.

Ernesto sorriu, deixou-a lá e calmamente foi tomar seu café. Depois foi até ela que parecia ador­mecida. Sentou-se na poltrona ao lado e fechou os olhos em concentração.

O que viu deixou-o admirado. Quando alguém es­tava muito envolvido com problemas emocionais, ele costumava utilizar exercícios de elevação espiritual, a fim de que a pessoa experimentasse o prazer de sentir vibrações sublimes e a partir dessa experiência come­Ã§asse a cultivar pensamentos mais elevados em busca de bem-estar.

Mas com Jacira acontecera algo diferente. Ele es­tava vendo que o espírito dela, fora do corpo, estava mesmo sentado em um banco de um lindo jardim florido, enquanto uma mulher muito bonita, ao seu lado con­versava. Uma calma muito grande reinava na cena.
Ernesto esforçou-se para ouvir o que diziam.

-   Você tem reagido e tentado melhorar. Precisa fazer muito mais. Hoje a trouxemos aqui para que pu­desse sentir o gosto de estar bem e quando acordar vai se recordar destes momentos. Isso vai ajudá-la a sentir que você pode conquistar uma vida melhor. Nós queremos ajudá-la, mas só poderemos fazer isso se você nos der a chance.

-   Eu quero ficar aqui com você. Não quero mais voltar para minha casa.

-   Isso não é possível. Lá é seu lugar até aprender como vencer todas as dificuldades.

- Não tenho como fazer isso!

- Não é verdade. Você é forte e dentro de você tem tudo o que precisa para tornar-se uma vencedora.

-  Você vai me ajudar?

-  Primeiro você precisa fazer a sua parte. Essa é a regra para podermos atuar. Está na hora de você voltar. Meu nome é Marina.

-  Onde você mora? Gostaria de procurá-la.

-  Muito longe. Você ainda não pode ir até lá. Mas quando pensar em mim, entrarei em contato.

Marina levantou as mãos de onde saíam feixes de luz azul brilhante e colocou-as sobre o corpo de Jacira. Depois de alguns segundos, desapareceu.

Ernesto abriu os olhos e notou que Jacira estava acordando dizendo baixinho:

- Eu quero ficar aqui. É muito bom. Não quero voltar.

Remexeu-se, abriu os olhos e fixando-os em Er­nesto disse emocionada:

-  Que sonho maravilhoso! - Depois, percebendo onde estava continuou: - Desculpe, eu dormi. Não sei como foi isso. Estava cansada...

-  Você não dormiu. Você saiu do corpo e foi en­contrar-se com o espírito de uma mulher.

Jacira olhou-o assustada:

- Espírito? Não. Era uma mulher muito bonita chamada Marina.
- Eu sei. Eu vi onde vocês estavam.

- Um lugar maravilhoso! Cheio de flores, tudo lindo! Acho que estive no céu!

Ernesto sorriu:

-   Você se elevou e visitou uma dimensão astral mais elevada. Por esse motivo, sentiu-se tão bem.

-   Ainda estou sentindo um bem-estar muito grande.

-   Você conseguiu fazer contato com essa mulher que deseja ajudá-la a melhorar sua vida.

Jacira suspirou pensativa, depois respondeu:

- Foi um sonho bom, mas não creio que se rea­lize. Minha vida não tem como mudar. Não posso abandonar meus pais, não tenho conhecimento nem uma profissão que me permita ganhar um salário maior. Ernesto sorriu e considerou:

- Você está olhando os fatos do ponto de vista materialista. A vida vai muito além da matéria. Nosso espírito é eterno, nunca morre. Nosso corpo de carne acaba, mas nós continuaremos vivendo em outras di­mensões do Universo.

- Como pode ser isso?

- Nosso espírito já vestiu outros corpos de carne neste mundo. Nós somos cidadãos do Universo, onde há milhares de moradas para toda a humanidade.

-  Como posso saber se isso é verdade?

-  Você acabou de viajar para um desses lugares.

- Esse jardim não pertence a Terra? Quando eu estava lá tudo era muito sólido.
 
-  Era sólido para seu espírito, mas invisível para os olhos da carne.

Não é um lugar onde você possa ir quando quiser, mas somente quando sai do corpo e vai com o corpo espiritual.


- Nós temos mais de um corpo?

- Temos vários que estão todos juntos trabalhando para que estejamos aqui. Mas a experiência que você viveu mostra que somos imortais, que a morte não é o fim e continuaremos vivos quando nosso corpo de carne morrer.

Jacira abriu a boca e fechou-a novamente, depois de alguns instantes tornou:

- Não foi a primeira vez que eu sonhei como hoje. Já estive em um lugar onde uma mulher falou comigo e eu nunca mais esqueci. Mas o sonho de hoje foi muito mais forte, claro, eu senti que estava muito contente, feliz como nunca me recordo de haver sido.

- Sinto que o que aconteceu hoje pode mudar sua vida. Gostaria de ajudá-la a conseguir isso.

- Vai me oferecer um emprego melhor?

- Não. Mas meus cursos têm esse objetivo. De­sejo que venha assistir às minhas aulas.

Jacira hesitou:

- Não sei...

-  Não gostaria?

-  Gostaria muito, mas talvez não possa pagar as aulas.

-  Você é minha convidada, não terá de pagar nada. Poderá vir todos os sábados.

-  As pessoas são bem-vestidas, devem gostar de conviver com gente de classe.

-  Você é tão boa quanto elas. Não se deixe levar pela vaidade. Não tenha vergonha de sua posição so­cial. Você é uma pessoa, precisa aprendera se valorizar. Terei o maior prazer em vê-la entre meus alunos.

-  Nesse caso farei o possível para vir.

-  Venha tomar seu café e depois quero mostrar-lhe todo nosso espaço e explicar-lhe algumas coisas mais.

Eles dirigiram-se para a mesa, Ernesto trocou o café com leite que estava frio e serviu-se também.

Depois, percorreram a casa e ele ia descrevendo como funcionavam os cursos. Já tinha escurecido quando Jacira saiu depois de despedir-se.

Durante o trajeto de volta, sentia-se animada e feliz. A vida também tinha um lado bom que ela um dia poderia desfrutar.

Chegou em casa depois das nove horas. Entrou e encontrou os pais diante da televisão. Vendo-a entrar, Geni levantou-se da poltrona dizendo:

- Até que enfim chegou! Pode nos dizer onde andou até esta hora?

Arrancada de seus pensamentos íntimos pelo tom desagradável da voz de sua mãe, Jacira sentiu como se lhe tivessem atirado um balde de água fria na cabeça.


A mudança foi tanta que a custo conseguiu se­gurar a irritação.
- Não é tão tarde assim - respondeu tentando dominar a raiva.

Geni colocou as mãos na cintura e continuou em tom provocativo:

- É sim! Está vendo, Tide? Ela pensa que mora em uma pensão, que pode sair sem dizer aonde vai e chegar em casa tarde da noite como se fosse uma qualquer.

Jacira olhou-a séria e preferiu não responder. Se falasse certamente iria brigar. Sem dizer nada, foi para o quarto. Sentou-se na cama tentando recuperar o bem-estar. Não conseguiu.

Começou então a rememorar tudo que acontecera naquela tarde. Cinco minutos depois, Aristides bateu na porta. Estava mal-humorado por ter que deixar seu programa esportivo predileto.

- Abra a porta, Jacira. Sua mãe está passando mal e a culpa é sua.
Uma onda de indignação envolveu Jacira. Le­vantou-se, abriu e ficou parada diante do pai. Não queria brigar.

Ele entrou e foi dizendo em tom contrariado:

- O que está acontecendo com você? Sempre foi uma boa filha. Por que agora deu para afrontar sua mãe? Sabe que ela é doente. Está passando mal, com dores no peito, falta de ar e chorando sem parar.

Jacira suspirou resignada. Sua vida não tinha jeito mesmo. O que fazer com uma família como a sua? Se eles fossem como Ernesto, tudo seria diferente. Amar­gurada respondeu:

-  Não fiz por mal, pai. Estou cansada e queria dormir.

-  Por que não disse aonde foi nem respondeu às suas perguntas? 

Ela se interessa pelo seu bem-estar. Preocupa-se com você, lhe quer bem. Por esse motivo sofre quando você não lhe dá satisfações.

Ela teve vontade de dizer que tinha idade para cuidar de si mesma e que não precisava que a mãe ficasse tomando conta de todos os seus passos. Mas sabia que não adiantaria. Ele nunca entenderia.
- Vou descer e conversar com ela.

- Faça isso, filha. Diga-lhe onde foi e com quem. Assim ela ficará bem.

Eles desceram. Geni estava estendida no sofá, com as mãos no rosto. Aristides aproximou-se:

- Está melhor, Geni?

Ela meneou a cabeça negativamente e não respondeu. Ele continuou:

- Jacira não fez por mal, é que chegou cansada e queria dormir. Veja, ela está aqui para conversar com você.

Geni continuou cobrindo o rosto e seu corpo foi sacudido por alguns soluços. Jacira não acreditou muito naquele mal-estar, mas estava desanimada e resolveu ceder:

-  Não precisa chorar, mãe. Eu fui na casa da minha colega da oficina. Ficamos conversando e o tempo foi passando.


-  Você não me disse nada e eu fiquei esperando você para jantar, seu prato está no forno.

-  Obrigada, mas estou sem fome.

-  Vai ver que jantou na casa dela. Você não gosta mais da minha comida.

-  Você está enganada. Tomamos um lanche e isso me tirou a fome. 

Estou cansada e quero ir dormir.

- Não vai lavar a louça do jantar? Jacira suspirou resignada:

-   Pode deixar, eu lavo.

Ela foi para a cozinha e começou a dispor tudo para lavar. 

Silenciosamente foi até a porta da sala espiar. Geni estava sentada em sua poltrona favorita assistindo à televisão. Ela não gostava do programa esportivo, mas se não deixasse o marido assisti-lo, ele por sua vez não a deixaria ver o que queria. Feliz­mente, o programa predileto dele estava no fim e logo ela poderia ver o que desejava.

Jacira olhou o rosto da mãe e notou que ela es­tava muito bem, fisionomia relaxada e calma. Não pa­recia ter chorado de verdade nem ter passado mal.

Enquanto lavava a louça, lágrimas sentidas des­ciam pelas suas faces enquanto ela pensava:

"A felicidade não é para mim. Sábado vou até Ernesto dizer que não será possível frequentar suas aulas. E melhor eu me resignar ao meu destino. Nada que eu faça poderá mudar isso".

 

 

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