sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Capítulo 6 
Durante os primeiros dias da semana seguinte, Jacira sentiu-se triste, deprimida. Na quinta-feira sentou-se ao lado de Margarida na hora do almoço. 

Tinha levado lanche de casa, mas estava sem fome.

Margarida olhou-a e perguntou:


-   Não vai comer?


-   Estou sem fome.


Margarida abriu a marmita e ofereceu:


- Eu trouxe macarrão e frango. Está muito bom. Quer um pouco?


- Não. Obrigada.


A outra a olhou séria e considerou:


-   Tenho notado que você anda triste, sem von­tade, não se arruma mais como antes. Ultimamente você estava bem, esforçava-se para melhorar, cuidava mais da aparência. O que aconteceu para você voltar a ser como antes? 


-   Eu me cansei, Margarida. Não vou lutar mais. De que adianta? 

Quem não tem sorte como eu, pre­cisa aceitar as coisas como são.

- Não a estou reconhecendo. Você disse que no sábado vestiria seu vestido novo e iria devolver aquele lenço perfumado. Pelo visto você não foi.

Jacira tentou reter as lágrimas que teimavam em lhe descer pelas faces, como não conseguiu, apanhou um guardanapo de papel e enxugou o rosto com raiva:

-   Eu fui.

-   Encontrou o homem?

-   Sim.

-   Você foi vê-lo e ele a maltratou e a deixou magoada.

-   Ao contrário. Ele me recebeu muito bem, mos­trou-me toda a casa. É muito grande e bem-arrumada.

- Então não estou entendendo. Conte-me tudo. Os olhos de Jacira brilharam e seu rosto dis-tendeu-se quando começou a contar como fora a vi­sita e o convite que Ernesto lhe fizera. Finalizou:

-  Eu saí de lá no sétimo céu, fazendo mil planos para mudar minha vida, mas ao chegar em casa caí na realidade. Minha mãe se fingindo de doente para não ter de fazer os serviços domésticos, meu pai interessado na televisão, repreendendo-me por eu protestar por ela ter deixado todo serviço para mim! Então percebi que por mais que eu faça nunca me libertarei deles.

-  Mas eles sempre foram assim. Não entendo por que você estranhou tanto.

-  É que Ernesto me mostrou que para certas pessoas a vida pode ser muito diferente da que eu sempre vivi. Senti que a distância entre eu e o povo que vai assistir às suas aulas é tão grande que não vai adiantar eu ir.

Margarida abraçou a amiga dizendo:

- Você está errada. A vida está lhe dando a chance de aprender com uma pessoa boa, de classe, e você está querendo jogar tudo fora. Eu, se pudesse, ado­raria ir a essas aulas.

- As pessoas estavam muito bem-vestidas.

- Você também estava. Aquele vestido azul lhe caiu muito bem. Além disso, tem o novo.

- Mas eu só tenho os dois. Teria de ir sempre c0m eles.

-   Isso não é problema. Eu resolvo para você. Jacira olhou-a admirada:

-   Como?

-   Vamos fazer novos vestidos.

-   Não tenho como comprar os tecidos.

- Deixe de ser teimosa. Eu tenho ainda alguns cortes. Para o próximo sábado você já tem. Mas eu tenho um que sobrou da minha coleção da loja que poderei reformar para você.
- Não precisa se incomodar. Eu resolvi não ir.


- Você precisa ir. Não pode perder essa oportu­nidade. Eu tenho suas medidas e hoje a noite mesmo vou reformá-lo para você. Com pequenos ajustes fi­cará lindo.


Jacira olhava hesitante e seus olhos brilharam motivados. O sinal tocou e elas precisavam entrar na oficina. Jacira abraçou a amiga dizendo emocionada:

- Você é o anjo bom que Deus colocou na minha vida. Nem almoçou por minha causa.

- Não se preocupe. Eu preciso perder alguns quilos. Elas voltaram ao trabalho e Jacira sentia-se muito
melhor. Iria assistir à aula no sábado, ainda que de­pois não pudesse ir mais. Pelo menos estaria em um ambiente alegre, bonito e entre pessoas educadas.

Na manhã do dia seguinte quando Jacira chegou ao trabalho, Margarida fez-lhe sinal que havia lhe le­vado o vestido. Apesar de curiosa, ela não pode vê-lo antes do almoço.

Assim que o sinal tocou, as duas correram ao toalete e Margarida, satisfeita, abriu a sacola e tirou um vestido de seda verde-garrafa. Os olhos de Jacira brilharam:

- Que lindo!

- Vai ficar muito bem em sua pele morena. Expe­rimente, vamos ver como fica.

Rapidamente Jacira o vestiu e caiu-lhe muito bem. O vestido era justo, manga japonesa, decote V e a saia tinha recortes que se abriam embaixo. Um cinto com uma fivela dourada realçava a cintura.

- Você está linda! Se eu ainda tivesse a loja, você seria minha modelo. Tem um corpo muito bom.

Jacira acariciava a seda da saia com prazer e co­mentou:
- Deve ser muito caro.

- É uma seda muito fina. Estou certa de que você com ele vai ser a mulher mais bonita de lá. Eu gos­taria que cuidasse melhor dos seus cabelos. Hoje, ao sairmos, vou levá-la ao salão do meu amigo Belo. 

Ele corta e penteia muito bem. E, pode ir sossegada, de você ele nem vai cobrar. Agora, tire o vestido senão não dará tempo de almoçar.

Elas se apressaram e ainda tiveram tempo de comer antes que o sinal soasse. Jacira estava ansiosa e parecia que o tempo não passava. Não via a hora que o sinal tocasse indicando o fim da jornada de trabalho. Finalmente ele soou e elas puderam deixar a oficina.

Uma vez na rua, Jacira disse à amiga:

- Seu amigo é um trabalhador como nós. Não é justo que ele me atenda de graça. Se ele não cobrar muito, eu gostaria de pagá-lo.

- Não seja orgulhosa. O Belo é gente boa. Ele foi pobre como nós, mas hoje tem um salão grande e clientes de classe. Mas apesar de estar bem de vida con­tinua sendo amigo dos amigos. Eu o conheço há mais de cinco anos.   

Quando ele começou, o pai não queria que ele fosse cabeleireiro e o colocou para fora de casa.


- Por quê? Ele não era trabalhador?

-   Era. Mas você sabe, ele não era igual aos outros rapazes e o pai queria que ele tivesse outra profissão.

-   Puro preconceito. É cruel colocar um filho para fora de casa.

-   Qual nada. Foi bom para ele. O pai não o en­tendia e estava atrapalhando sua vocação. Claro que no começo foi difícil, e eu, muitas vezes, chamei-o para ficar em casa. Mas ele logo começou a trabalhar de ajudante em um salão para pagar os cursos e quando se formou começou a ganhar dinheiro. Até que montou seu próprio salão. Você vai gostar dele. Vamos tomar aquele ônibus que está vindo.

Elas correram e conseguiram subir no ônibus. Não estava tão cheio como Jacira costumava ver. É que ele se dirigia para o centro da cidade.

A certa altura, Margarida deu sinal e desceram. O bairro era bonito, as casas boas e as ruas cheias de árvores.

- Venha - convidou Margarida. - Fica logo ali. Foram andando e pararam diante de um prédio
muito bonito, o que fez Jacira observar:

- Quando passo por um lugar como este, não tenho nem coragem de entrar.

- Bobagem. Eu não ligo para isso.

Margarida puxou Jacira pela mão e entraram no salão. Jacira encantou-se com os espelhos e os ar­ranjos de flores.

- A esta hora não tem muita gente. Mas aqui cos­tuma estar sempre lotado.

Havia apenas duas mulheres sendo atendidas. Margarida, segurando Jacira pela mão, caminhou para o fundo do salão, em direção a um rapaz que estava sentado de costas tomando um café.

- Como vai, Belo? - disse Margarida tocando le­vemente no ombro dele.

Imediatamente ele se voltou e vendo-as le­vantou-se com um sorriso agradável no rosto:

- Margarida, minha linda! Que bom vê-la! Abraçou-a calorosamente beijando-a sonoramente
na face.

Jacira olhava-o admirada. Era um homem alto, lindo, moreno, traços perfeitos, grandes olhos verdes, cabelos castanhos com reflexos dourados, exibindo dentes alvos e bem distribuídos.

- Esta é minha amiga Jacira. Já lhe falei dela.

- Como vai, Jacira? Faz algum tempo que Marga­rida me falou de você. Por que demorou tanto? 

- Vou bem... - balbuciou ela sem saber o que dizer. Margarida interveio:

-  Vou contar-lhe por que decidimos vir hoje aqui. Em poucas palavras Margarida falou do convite
para as aulas e por que Jacira desejava desistir. Ele ouviu tudo com atenção, depois comentou:


-   Não faça isso, minha filha! No mundo, se você não se colocar lá em cima, os outros passam por cima sem dó nem piedade. Quem espera valorização dos outros, fica sempre por baixo. É você que tem de se valorizar.

-   É que eu nunca tive chance na vida. Sempre fui pobre, feia, e meus pais dependem de mim.

Belo fixou-a sério, depois respondeu:

-   No meu conceito, não existe mulher feia. Só as que acreditam na própria feiura e não fazem nada para melhorar. Quanto a você, dá para notar que não se cuida mesmo. Está maltratada, rosto sem ma­quiagem, cabelos queimados de sol, sem brilho, e ou­tras coisas mais.

-   Eu sei que sou assim. Eu nasci assim e não vejo como mudar.

- Pois eu aposto com você que posso trans­formá-la em uma mulher elegante, de classe.

Os olhos de Jacira brilharam por alguns segundos, depois uma onda de tristeza a acometeu:

- Essas coisas custam caro. Não tenho como pagar.

- O mundo não se fez em um dia. Posso ensinar-lhe como cuidar de sua pele, dos seus cabelos, com recursos caseiros. Maquiagem não custa tão caro. Há produtos baratos que fazem o mesmo efeito. Mas há um problema...

- Qual? - indagou Jacira.

-   Preciso saber se você realmente quer se tornar uma mulher bonita, atraente.

-   Querer eu quero, mas não acredito que eu seja capaz de me tornar o que você diz.

-   A postura é o mais importante. Se você não perceber sua própria beleza, se não acreditar que é bonita, não poderei fazer nada. É a confiança em si, o brilho do olhar, o sorriso alegre, que criam as energias necessárias à mudança. Para que sua beleza venha para fora, é preciso que você aprenda a enxergá-la dentro de você e expressá-la.

- É verdade - tornou Margarida sorrindo. -Quantas vezes vemos mulheres que achamos feias, ao lado de homens bonitos, chiques, que tudo fazem para agradá-las?

- Entendeu o que eu disse? - tornou Belo com um sorriso maroto.
- Será que eu seria capaz disso? Belo deu de ombros e respondeu:

- Não sei. Só sei que se desejar de fato, vai con­seguir.

Os olhos de Jacira brilharam, apesar de tudo, ela estava hesitante. Margarida interveio:

- Ele sabe o que diz! Acredite. Você já perdeu muito tempo em sua vida. O que está esperando?

Belo puxou uma cadeira em frente do espelho:

- Sente-se aqui, Jacira. Vamos ver o que podemos fazer.


Ela obedeceu. Olhando-se no espelho sentiu von­tade de levantar-se e ir embora correndo. Ela era muito feia! Por mais que ele quisesse não conseguiria torná-la bonita.

Belo examinou os cabelos dela com atenção, puxou-os para trás observando o efeito, depois os le­vantou dos lados, puxando uma onda do lado, virou novamente e depois disse:

- Seu cabelo é de boa qualidade. Está maltra­tado. Já sei como vou cortá-lo e fazer uma boa hidra­tação. Quanto à sua pele é boa e sem manchas, mas também precisa de certos cuidados. Vou ensinar-lhe como fazer em casa.

Colocou um avental nela, chamou uma mocinha e deu as instruções para lavar seus cabelos. Enquanto a garota levou Jacira para o lavatório, ele ficou conver­sando com Margarida:

- Você a trouxe para que aprenda a cuidar-se. Quando é que também vai criar vergonha e se cuidar como já lhe ensinei?

-   Eu estou bem assim. Não tenho paciência para fazer o que você quer.

-   Desde que trancou seu coração sente prazer em ficar feia para escapar dos homens. Está perdendo muito tempo. A vida passa e quando se arrepender, será tarde.

-   Eu não tenho um corpo elegante. Sou baixinha e gordinha. Por mais que faça, não sairei disso.

-   Você poderia ser uma gordinha linda se se cui­dasse. Já que não quer emagrecer, cuidar do corpo, pelo menos cuide dos cabelos, da pele, que já foi melhor do que agora.

-   Eu vim para ajudar Jacira. Desejo que ela en­contre alguém e possa ser feliz. Sabe que ela nunca teve um namorado? Tem mais de trinta anos.

-   Ela ainda não entendeu o que é ser mulher. Não tem postura. Não encontrou seu próprio brilho. Estou certo de poder fazê-la perceber que pode mudar.

Pouco depois, quando Jacira voltou, ele começou a trabalhar. Virou a cadeira dela de costas para o es­pelho e mandou uma moça fazer suas unhas. Cortou os cabelos, depois os penteou e arrumou as sobrance­lhas, fazendo uma maquiagem.

Quando ela ficou pronta, Belo virou a cadeira de frente para o espelho e disse:

- Conhece essa mulher?

Jacira olhou e não se reconheceu. Os cabelos mais curtos, penteados para o lado, desciam até os ombros repicados e ligeiramente ondulados suavizavam os traços de seu rosto. Seus olhos pareciam maiores e seus lábios bem delineados tornaram-se mais bonitos.

Jacira ficou muda. Aquela não podia ser ela. Quando conseguiu falar disse:

-   O que você fez? Essa não se parece comigo.
-   Essa é você. Não gostou?

-   Estou mais jovem, mais bonita.

- De agora em diante precisa conservar. Vou dar-lhe alguns produtos para que possa continuar se arrumando bem.


Antes que ela falasse, ele continuou:

- Não vai lhe custar nada. O salão ganha dos for­necedores alguns produtos e posso doá-los desde que me prometa que vai usá-los.

Jacira estava entusiasmada. Pela primeira vez via-se como uma mulher bonita. Não conteve a admiração:

-   Será que vou saber me arrumar assim?

-   Não será difícil. Da forma como cortei seus ca­belos, será fácil penteá-los. Vou ensiná-la. Quanto à maquiagem, é muito simples. 

Logo aprenderá.

Na meia hora em que ficaram conversando, Belo deu-lhe alguns produtos e ensinou-a a usá-los. Ao des­pedir-se, Jacira fez questão de agradecer e dizer que dali para a frente ela lhe seria grata e gostaria muito que a aceitasse como sua amiga. Belo sentiu-se feliz e satisfeito. Transformar as pessoas, torná-las belas, era o que ele mais gostava de fazer.

Quando deixaram o salão, já havia escurecido, só então Jacira pensou em seus pais. Certamente não aprovariam sua mudança.

-   Quando eu chegar em casa vou ter de brigar com minha mãe. Ela não vai gostar da minha aparência.

-   Não entendo por quê. Você ficou muito mais bo­nita. Qualquer um gostaria de vê-la mais arrumada.

-   Não minha mãe. Ela é antiquada. Não gosta de maquiagem. Vai ficar mais brava com a cor do es­malte em minhas unhas. Nunca deixou que eu usasse nem base.

- Não ligue para o que ela vai dizer. Quando souber que daqui para a frente você vai se arrumar assim, acabará se acostumando.
Jacira suspirou:

-   Espero que sim.

-   Você gostou, não gostou?

-   Adorei.

-   Então pronto. Isso é o que conta.

Elas pararam no ponto de ônibus. Jacira des­pediu-se da amiga beijando-a na face, depois disse:

-   Nunca esquecerei o que está fazendo por mim. Você pode contar comigo para qualquer coisa.

-   Gosto de você e desejo que seja feliz.

Abraçaram-se e Jacira atravessou a rua para es­perar o ônibus e ir para casa. Apesar de já ter escure­cido, ainda havia uma fila e ela posicionou-se no fim dela. Se tivesse sorte tomaria o primeiro ônibus, ainda que fosse para viajar em pé. Não queria se atrasar ainda mais.

Em seguida, chegaram mais dois homens e fi­caram atrás dela. Eles conversavam animadamente e Jacira nem prestou atenção. Estava preocupada com a reação de sua mãe.

Naquele momento, alguma coisa caiu sobre seu pé esquerdo e ela estremeceu assustada. Olhou para ver o que era e um isqueiro estava entre seus pés. O homem, que estava atrás dela, abaixou-se para apanhá-lo e Jacira afastou-se um pouco para que ele o fizesse.


Depois, ele levantou o rosto e olhou-a sorrindo:

- Desculpe. Machucou?

Era um homem bonito, olhos grandes que a olhavam fixamente. Ela, um pouco acanhada, respondeu:

-   Não.

-   Sinto tê-la assustado. Mas esse pequeno inci­dente me trouxe a oportunidade de conhecê-la.

Jacira não conseguiu responder. Ele a olhava com admiração e ela ficou sem jeito.

- Se você não fala com desconhecidos, eu me apresento: meu nome é Nelson Martins. E o seu?

Ela, então, respondeu com voz que procurou tornar firme:
-   Jacira.

-   Muito prazer.

Ele estendeu a mão e ela a apertou. Vendo que ele queria continuar conversando, Jacira ficou aliviada quando o ônibus chegou e as pessoas começaram a subir.

No momento em que ela ia subir, ele rapidamente a ajudou, o que a fez ficar mais acanhada. Nunca nenhum homem a tinha olhado daquele jeito e ela sentia-se um pouco assustada.

Parecia-lhe ouvir sua mãe dizendo: "Vai já lavar essa cara e tirar essa maquiagem. Você parece uma prostituta".

Sentiu vontade de sair correndo e procurou sentar-se ao lado de uma senhora para evitar que ele se sen­tasse ao seu lado. Ele sentou-se do outro lado, um pouco atrás e ela sentia o olhar dele pousado nela. Apesar do medo e das palavras de sua mãe que a incomodavam, ela refletiu que alguém a olhara com interesse.

Ainda que fosse com intenção ruim, pelo menos alguém se interessara por ela.

Quando chegou ao ponto, ela deu o sinal, desceu, e nervosa notou que Nelson desceu também. Co­meçou a caminhar depressa, mas ele a alcançou com facilidade segurando seu braço:
- Espere. Quero falar com você.

Ela parou olhando-o nos olhos. Se ele lhe dis­sesse algo indecente, estava disposta a mostrar-lhe que não era uma prostituta. Ele sorriu e continuou:

-  É sempre assim?

-  Assim como? - respondeu ela de má vontade.

- Difícil. Eu já me apresentei, podemos con­versar? Simpatizei com você, desejo conhecê-la. Você é casada ou comprometida?

- Não. Mas não costumo conversar com estranhos.

- Já nos apresentamos, não somos mais estranhos. Os olhos dele eram amistosos e o rosto de Jacira

desanuviou-se.

-  É que estou com pressa. Atrasei-me, não avisei minha mãe e ela deve estar preocupada.

-  Foi por uma boa razão. Vi quando saiu daquele salão.

- Viu?

- Sim, e a segui até o ponto de ônibus. Não queria Perder a chance de conversar com você.

Vendo que ela não respondeu, ele pediu:

- Vamos nos sentar em um banco da praça para conversar um pouco?

Jacira estava sem saber o que dizer. Seu rosto es­tava corado e parecia-lhe estar fazendo alguma coisa errada. Por outro lado sentia vontade de ir.

-  É tarde. Não posso demorar.

-  Apenas alguns minutos não fará diferença, você já está atrasada mesmo.

Ela concordou com a cabeça e ambos foram ca­minhando até a praça; no caminho ele segurou delica­damente o braço dela para atravessarem a rua. Sen­taram-se no primeiro banco. Ela não sabia o que dizer. Para deixá-la mais à vontade, ele perguntou se ela trabalhava e, percebendo que ele a tratava com res­peito, aos poucos Jacira foi falando sobre seu trabalho na oficina. Por fim, perguntou:

-  E você, trabalha em quê?

-  Em um escritório de contabilidade.

-  Você gosta?

-  Nem tanto. Mas foi o que pude encontrar.

-  Eu também não gosto da oficina. Mas preciso do emprego. Meus pais dependem de mim. E por falar neles, tenho de ir.

Jacira levantou-se, ele também, segurou a mão dela dizendo:
-  Vou acompanhá-la até sua casa.

-  Não é preciso.

-  Faço questão.

Jacira teve medo de que sua mãe a visse e a mal­tratasse diante dele.
-  Você vai apenas até a esquina.

-  Mas você vai me mostrar a sua casa.

Eles foram caminhando e quando chegaram na esquina da casa dela, pararam. Jacira disse:

-  Vamos nos despedir aqui.

-  Qual é a casa que você mora?

- Não vale a pena lhe dizer. É uma casa velha e feia.

- Não importa. Hesitante, Jacira apontou:

-   É aquela cinza, no meio do quarteirão.

Ele tirou um cartão do bolso e deu-o a ela dizendo:

- Como você não tem telefone, aqui tem o meu número. Ligue-me nos próximos dias, poderemos sair, ir ao cinema, ou fazer o que você desejar.

Vendo que ela estava indecisa ele continuou:


-   Prometa que vai me ligar.

-   Está bem. Agora tenho de ir.

Ela estendeu a mão que ele segurou e beijou-a na face. Jacira sentiu as pernas tremerem.

-   Boa noite - disse ele sorrindo. - Não deixe de me ligar.

-   Boa noite - respondeu ela, afastando-se de­pressa.

Seu coração batia descompassado. Parecia-lhe ter cometido um crime. Seu rosto maquiado, corado pela emoção, o atraso para chegar em casa, tudo isso faria com que a mãe notasse que algo diferente havia acontecido.

Abriu o pequeno portão de ferro do jardim, ca­minhou até a porta e esperou um pouco para en­trar. Mas estava difícil de se acalmar. Olhou o relógio, passava das nove. Nunca tinha chegado em casa tão tarde. Respirou fundo, abriu a porta e entrou.

Seus pais estavam na sala vendo televisão na obs­curidade e ela passou rápido, foi logo para o quarto. Ouviu a voz da mãe gritar:

- É você, Jacira? Por que voltou tão tarde e foi para o quarto? O que aconteceu?

- Nada. Está tudo bem.

- Desça para jantar e lavar a louça. Apesar de estar com fome, ela respondeu:

- Não quero jantar. Estou cansada e vou dormir.

Ela fechou a porta do quarto e olhou-se no es­pelho. Seu rosto corado, maquiado, os cabelos bri­lhantes e arrumados, fizeram-na sorrir com prazer. Parecia outra mulher, mas era ela.

Lembrou-se de Nelson, ele aparentava uns qua­renta anos, era alto moreno, grandes olhos castanhos, sorriso bonito, elegante, bem-vestido. Difícil acreditar que ele tivesse gostado dela.

Mas era verdade. O cartão dele ainda estava na sua mão.

Alguém mexeu na maçaneta da porta e Geni gritou irritada:

- Jacira! Por que trancou a porta? Abra, eu quero falar com você.

Ela não tinha coragem de abrir. A mãe bateu com insistência pedindo que ela abrisse. Jacira ir­ritou-se, guardou o cartão na gaveta e depois abriu a porta dizendo:

- O que quer? Eu estava arrumando minhas coisas para amanhã cedo.

Ela entrou e colocou a mão na boca dizendo as­sustada:

- Jacira! O que você fez, ficou louca? Está pare­cendo uma...
Jacira a interrompeu:

-  Não termine. Eu sei muito bem o que estou fazendo. Não quero sua opinião. Eu tenho idade para saber o que quero.

-  Não acredito que esteja me desafiando desta forma. Ai... Estou me sentindo mal... Tide, venha de­pressa ver o que Jacira fez. Essa filha ainda me mata!

O programa de televisão estava interessante e Aristides fingiu que não ouviu. Jacira controlou a raiva e com voz firme respondeu:


- Você terá de se acostumar. De hoje em diante vou me arrumar assim.

Os olhos de Geni brilharam raivosos. Ela gritou:

- Tide! Venha aqui, já. Jacira está me afrontando. Eu que sempre me sacrifiquei por ela. Tiiide! Estou passando mal, socorro!

Jacira suspirou procurando conter-se. Naquele momento ficou claro que ela estava fingindo. Agia assim para manipular a família.

Nervoso por ter de atendê-la, Aristides subiu as escadas quase correndo e viu Geni amparada na porta do quarto.

- O que aconteceu? - indagou.

-  Olhe para Jacira. Veja com seus próprios olhos o que ela fez.
Aristides olhou, viu e admirou-se:

-  Jacira! Como você está bonita! Parece outra pessoa.

-  Bonita?! É isso o que você diz? Ela está vulgar pintada desse jeito. Está me afrontando dizendo que vai pintar-se assim todos os dias.

-  É, pai. Daqui para a frente vou me arrumar como as outras mulheres.

Aristides estava boquiaberto. Não é que Jacira es­tava até bonita? 

Voltando-se para Geni disse:

- Você está exagerando. Não é tanto como você
diz.

Geni começou a soluçar dizendo:

-  Você também está contra mim? Como pai de­veria obrigá-la a lavar essa cara e arrumar o cabelo como antes. Filha minha não pode sair por aí como uma qualquer. Até as unhas ela pintou de vermelho. Onde já se viu?

-  Jacira, você deve respeitar sua mãe e fazer o que ela pede - disse Aristides sem muita convicção.

-  Pai, sou uma mulher de trinta e oito anos. Posso decidir me arrumar como gosto. Fazendo isso não estou faltando com o respeito a você e a ela. Eu não gosto da maneira como mamãe se arruma, mas nunca disse nada. Ela tem o direito de se vestir como quer.

-  Está vendo? Agora ela me ataca dizendo que não sei me vestir. Ai, estou com falta de ar... Acho que vou cair...

Aristides segurou-a pelo braço:


-        É melhor se deitar. Vou levá-la para o quarto. Com muito custo ela deixou-se levar soluçando
até o quarto. Jacira fechou a porta, abriu a gaveta e segurou o cartão que Nelson lhe dera. Ele era o pri­meiro resultado de sua mudança.

Sentiu uma onda de alegria. Abriu o guarda-roupas e pensou que precisava fazer outro vestido. Estava ansiosa para ir à aula de sábado e descobrir o que Ernesto diria de sua nova aparência.

No dia seguinte veria com Margarida como fazer
isso.

Geni, assim que Aristides fechou a porta do quarto, parou de soluçar:

-  Você ficou do lado dela e contra mim.


-  Mas ela está mais bonita.


- É isso que você quer que ela sinta? Já pensou que se isso continuar todo nosso esforço em educá-la para nos amparar na velhice terá sido inútil? Que logo vai aparecer um sujeito qualquer e levá-la embora? O que faremos se isso acontecer? Você não arranja mais emprego. Não temos renda. Sua aposentadoria não é suficiente para nos sustentar.


Aristides, pensativo, coçou a cabeça. De certa forma Geni tinha razão. O que fariam os dois sozinhos? Geni não aguentaria fazer todo serviço da casa. Ele teria que ajudar. Adeus leitura de jornais, os papos com os amigos na padaria e os programas de televisão. Não. Isso não poderia acontecer.


-  Você está certa. Eu errei. Vou ficar do seu lado. Agora é tarde. Descanse. Amanhã falarei com ela. Ja­cira terá de nos obedecer como sempre fez.


-  Isso mesmo. Nós precisamos dela e não po­demos facilitar.


Após essa resolução, Aristides deixou Geni no quarto e prazerosamente voltou a sentar-se diante da televisão.
 

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